TESTEMUNHOS - Academia de Música de Santa Maria

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MEMÓRIAS JUVENIS DA ACADEMIA
DE MÚSICA DE SANTA MARIA DA FEIRA

Descia a rua Guilherme Moreira, onde morava, até à praça do chafariz. Pouco abaixo, à esquerda, ficava o antigo e modesto edifício onde funcionou inicialmente a Academia de Música de Santa Maria, na então Vila da Feira, terra da minha infância e adolescência.
Era em finais de 1955 e eu tinha completado, havia pouco, onze anos de idade.
A título de referência particular, cito o facto de minha mãe, Gilberta Paiva, ter sido fundadora e Diretora desta escola. Possuía a justiça de não me privilegiar por este motivo, exigindo tanto ou até mais de mim, no piano, instrumento que lecionava, relativamente aos seus outros discípulos.
Foi lá, a par do externato de Santa Maria, que também frequentava, que fiz as minhas primeiras amizades e camaradagem com os meus colegas.
Além do piano, frequentava, tal como outros alunos, a classe de Canto Coral, dirigida pela professora Fernanda Correia, a qual também aí ministrava aulas de Canto. Mais tarde, a direção do referido grupo coral passava para o padre Fasciolo, notável músico vindo da Argentina. Continuei a pertencer a este agrupamento. Fui também aluna da professora Maria Raquel Ferreira Soares, na disciplina de Acústica e História da Música.
A frequência estudantil de então era respeitadora e disciplinada, dentro daquele à vontade que deve ser concedido a crianças e jovens. Muitos dos alunos esforçavam-se por dar de si o melhor possível e não havia reclamações acerca das notas atribuídas, tanto da parte dos pais como dos alunos, confiantes de que eram merecidas, dada a competência do corpo docente. Era inesquecível a "magia" daquelas noites de audições escolares, em que se apresentavam os discípulos de Instrumento, o grupo coral e a orquestra infantil da Academia.
Guardo, em geral, as melhores recordações, tanto dos colegas como dos docentes, cujo trato era agradável simultaneamente com o grau de exigência que consideravam necessário. Ainda como aluna da Academia, fui terminar o curso de Piano, efetuando o 9º ano de então, no Conservatório Nacional em Lisboa.

Teresa Paiva | Ex aluna e Pianista



BOAS INSTITUIÇÕES
GRANDES INSTITUIÇÕES

As boas instituições educativas são sérias, competentes, bem estruturadas e eficazes na leccionação. As grandes instituições, por sua vez, são segundas casas: acolhem os seus alunos e docentes com a mesma familiaridade e calor de um lar, e plantam no seu futuro uma impressão inextinguível, que ultrapassa a mera aprendizagem e recolha de informação.
As boas instituições possuem pessoal qualificado e alunos empenhados. As grandes instituições abraçam através das suas fachadas, desenham experiências que se transformam em memórias queridas, e possibilitam o sonho para lá da capacidade.
As boas instituições formam profissionais. As grandes instituições formam pessoas.
As boas instituições são planeadas. As grandes instituições evoluem, desabrocham como um organismo vivo; são feitas de História e de futuro, e em ambas depositam a alma.
As boas instituições direccionam. As grandes instituições são um fim em si mesmo, em que a pedagogia e o espírito que a rodeia – nas paredes, nas pessoas e na memória mais ou menos distante – constituem um elo indissociável.
Estudei na Academia de Música de Santa Maria da Feira durante década e meia. Ao longo desse período cresci enquanto pessoa e nasci enquanto artista; aprendi sobre o mundo e sobre mim próprio; mudei, para melhor ou para pior, sempre abraçado pelas mesmas paredes brancas, pelos mesmos portões, pela mesma fachada que a cada dia me saudou de forma diferente, como só ela sabia fazer. Quando me analiso e encaro vivências passadas, deparo-me tanto com o seio do meu lar como com as caras e corações – amigos, autoritários, paternais, nutridores – com quem cresci nessa minha moradia musical. Dei-lhe também um pouco de mim próprio, espelhado algures nos seus azulejos, para um dia vir a ser respirado por aqueles que o futuro trouxer. Também eles aprenderão a conhecer, a interpretar e quiçá a amar a arte que lá se lecciona, alimentando um espírito colectivo em perpétuo enriquecimento.
Sempre acreditei, na inocência da meninez, que a Academia que frequentava era uma grande instituição. Hoje sei-o de certeza.

Tomás Costa | Aluno e Violinista



SABER HONRAR
A MEMÓRIA E O LEGADO

“Se é por ser na Vila da Feira, muda-se o nome à terra! Esta senhora, que nem é da Feira, propõe criar uma escola que vai engrandecer a vila, mas os senhores não a querem deixar!” Estas são as palavras de Domingos Caetano de Sousa no Ministério da Educação, o presidente da Câmara na Vila da Feira de 1955.
Gilberta Paiva, com grande amor e grande fé na terra onde habitava, decidiu lutar por um sonho: democratizar o ensino da música. Fê-lo, antes de mais, com a criação de uma escola, pioneira e modelar. E desejando abrir a todos as portas dessa escola, deslocou-se por diversas vezes a Lisboa de modo a concretizar outros sonhos:
1. Bolsas para alunos que de outra forma nunca poderiam ter prosseguido estudos;
2. Exames Oficiais na própria academia, evitando as deslocações dos alunos a Lisboa;
3. Cursos Superiores na própria academia, possibilitando a quem aí estudava a totalidade da sua formação;
4. Recrutamento dos mais competentes professores para a sua escola. Se esta era pobre – vinda alguma mobília da casa da própria directora – o que não poderia faltar era a melhor oferta educativa para os seus alunos.
À formação académica juntou a cultural: com a fundação de uma delegação da pró-arte, Vila da Feira podia ouvir os mesmos músicos que o público de Lisboa então ouvia.  
A Academia de Santa Maria foi, antes de mais, uma obra de amor e de enorme altruísmo. Valorizada a sua importância, foi calorosamente acolhida pelas entidades locais: a câmara municipal, através do seu presidente e até a igreja, estando o padre Manuel Reis - o senhor Vigário - entre os primeiros professores da Academia, leccionando a disciplina de português.
Sem vaidades, sem falsas modéstias: a Gilberta Paiva se deve a descentralização do ensino musical em Portugal, que começou precisamente aqui. E daqui a própria só sairia quando as vicissitudes da vida a isso a obrigaram.
Se não se deve, nem pode viver do passado, é também inegável a sua importância para a construção do futuro. Vila da Feira mudou de nome, cresceu, desenvolveu-se. Mais escolas se criaram, por todo o país. A sua Academia aqui continua. Que aqui possa sempre continuar, mantendo os mesmos propósitos que guiaram o seu nascimento: a formação pessoal, intelectual e musical de cidadãos informados e completos. Que a mesma chama que gerou a Academia possa continuar acesa em todos os elementos a ela directa ou indirectamente ligados: alunos, professores, elementos directivos, funcionários, pais, entidades locais.
A professora Gilberta Paiva, estou convicta, olha agora por nós e para nós.
Que saibamos todos, da melhor forma, honrar a sua memória e o seu legado!

Ana Paiva Sá Carvalho | Neta de Gilberta Paiva e Professora na Academia
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